TRIPULANTES DESTA MESMA NAVE

quinta-feira, 6 de agosto de 2015

Fogo-fátuo


                                                                                                                            J. Flávio Vieira

Elpídio , depois de tanto desprezo, resolveu abandonar de vez a Expocrato. É que nos últimos anos foi se sentindo, pouco a pouco, relegado a um terceiro plano. Percebeu-se, por fim, como uma mosca dentro do Centro Cirúrgico.  Certo que nunca fora chegado à Pecuária e aos mistérios da Agricultura, encantava-se, no entanto, com aquela muvuca de sempre: a possibilidade de encontrar velhos amigos, a música , o filhóis , o paraíso que ali carrega  o nome enganoso de Inferninho, a paquera . Sem falar no Whisky que o transformava, facilmente, numa mistura de Leonardo de Caprio e Bill Gates.  De repente, teve a sensação de que chegara em Marte. Música ruim, cerveja quente e cara , estacionamento a preço de Avenida Paulista. Os próprios companheiros dos velhos tempos começaram a rarear, tangidos, possivelmente, pelos mesmos fantasmas que agora o atormentavam. As pretensas e prováveis paqueras já não tinham idade para aguentar Wesley Safadão  gritando no ouvido , ou sertanejos se derramando em lágrimas . E as  novas gerações estavam numa outra dimensão, não se interessariam , nunca, por um goiabão da sua marca, sexy ( mas aquele tipo de Sexy à Genário)  com cheiro de Brilhantina Glostora e perfume da Avon.  Não tinha mais o que fazer na Expocrato.
                                   Este ano, no entanto, uma novidade balançou suas estruturas. Soube da vinda do “Rei – Roberto Carlos”.  Voltaram, como por encanto, as longas costeletas à Elvis, a calça Boca-de-Sino, o medalhão no pescoço e o cabelo  black-power. Roberto escrevera a trilha sonora da sua juventude, cada música o transportava, imediatamente, para uma sensação única : o cheiro de jasmim  da menina de pastinha, a lombra do primeiro baseado, o gosto do beijo roubado no portão...  Além de tudo, com certeza, toda aquela geração estaria reunida no show do “Rei”.
                                   Elpídio quebrou, então, a jura que fizera dois anos atrás: “Nunca mais pisarei  na porcaria dessa Exposição!” . Comprou, ainda relutante, o Ingresso Ouro e se preparou, ansiosamente,  para  os “Detalhes tão pequenos”. E foram muitas e muitas “Emoções”... Música a música foi como se projetassem , caleidoscopicamente, fragmentos da sua vida. A plateia , educada e atenta, compunha-se de  incontáveis companheiros dos velhos tempos. Todos ávidos em apreender, junto a cada canção, estilhaços felizes da existência que se foram partindo ao longo do caminho. Elpídio percebeu em todos a mesma dupla sensação: a hipnose com  o brilho baço de momentos e sentimentos afogados  em meio às cinzas e a angústia disfarçada de não mais ser possível refazer o cristal que se esfacelou. Era como se todos estivessem ofuscados com o brilho de uma chama , sem perceber que era um  mero  fogo fátuo.
                                   Elpídio , então,  voltou o corpo para a outra extremidade da estrada. Parecia escura e tenebrosa, mas era sua única possibilidade de seguir em frente. Poderia permanecer postado em meio ao caminho apenas contemplando , saudoso, o fogo fátuo: mero esboço da ardente fogueira  de outrora. Despiu-se, calmamente, jogou longe os chinelos e partiu nu , na vereda desconhecida ,  aproveitando a fosca luz que vinha de trás,  pra não sei onde, pra até quando, pra quem sabe um dia...   


Crato, 06/08/15

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