Certo dia, Adonias se enfeitiçou por uma filha de Iansã, foi
pra Salvador escreveu que não voltaria mais. Entrei em desespero e
jurei não me envolver com mais ninguém - com a ajuda de Deus,
criaria o meu filho! Meses depois houve o concurso da Polícia
Militar e eu fui aprovada. Após a fase de treinamento, fui destacada
para o patrulhamento na Beira Mar, em dupla com um colega, quase
sempre de manhã.
Ali, as pessoas que caminhavam ou corriam, eram rostos
anônimos, pouco a pouco tornados familiares. Com o tempo percebi que
um senhor olhava demoradamente para mim. Até então, nenhum bom-dia,
nenhum aceno de onde a minha intuição só enxergava carência e
solidão.
Veio o Dia Internacional da Mulher e ele me surpreendeu com um
ramalhete. Eu timidamente agradeci, sob a ironia leve do colega. Sem
saber o seu nome, a partir daí os bons-dias se sucederam de maneira
formal. No Dia dos Namorados, passando apressado, ele me deixou um
presentinho e um cartão. Tamanha a surpresa, foi tudo tão rápido,
eu nem pude recusar. Havia um número do telefone e um anel. À
noite, liguei hesitante e agradeci. Dias depois nos encontramos. Era
um viúvo que não queria mais viver sozinho.
Esperei o tempo de Deus e nos casamos. Vicente é engenheiro,
eu deixei a polícia e me formei em contabilidade. Trabalho no seu
escritório de projetos e somos uma família normal. O meu filho
estuda arquitetura e o tem como um verdadeiro pai. Nós conversamos
bastante e estamos indignados com a situação atual. Assim,
participamos ativamente daquelas manifestações.
Numa delas, estivemos à frente da multidão, eu entre
Vicente e o meu filho, braços dados a universitários,
secundaristas, donas de casa e profissionais liberais. À entrada do
prédio, havia uma barreira policial, porém ex-colegas me
reconheceram e nos deixaram avançar. Na tribuna um demagogo
homenageava um vagabundo qualquer. Não sei como, mas logo atrás de
nós surgiu um grupo de mascarados fortões trazendo barra de ferro,
corrente e soco-inglês. Foi uma correria geral.
No plenário, em pânico, o velho corrupto desmaiou. Outro,
ajoelhado e sob a ameaça de um porrete, jurava defender o povo desde
o tempo de líder sindical. Um chilique jogou o baitola nos braços
do machão, antigo coronel da ARENA, e os dois fugiram para o
banheiro das mulheres. A gordona, chorando, se escondeu embaixo da
mesa e padecia sufocada. O histriônico se borrou todinho e a grande
liderança ficou toda urinada.
De tão hilariante o espetáculo, o pessoal nada quebrou e
se sentiu vingado. Saímos rapidamente pela porta dos fundos e a PM
fez de conta que ia atrás. Dei um tchauzinho pros ex-colegas e a
massa iniciou o Hino Nacional. Ninguém parava de rir e Vicente era
só felicidade: ele é de sessenta e oito, esteve na passeata dos cem
mil e ainda não perdeu as ilusões.
Foi só um susto na corrupção e a coisa parece não ter
jeito: é mensalão, lava-jato, petrolão... E até já escalamos a
seleção da penitenciária: Cerrado – Primo, Babel, Boca Mole e
Caju – Indio, Santo e Mineirinho – Ferrari, Todo Feio,
Caranguejo e Angorá.
Que valha-nos Deus e Nossa Senhora!
(*)
Médico-cardiologista (Fortaleza-CE)
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