A rua Irineu Pinheiro – no Pimenta - foi palco de minha adolescência. Ali aportei aos 10 anos, recém-chegada da França, onde havia passado um ano na cidade de Arès (perto de Bordeaux) – mas isto é outra história.
Minha casa foi batizada com um nome festivo: FrançAlegre. Meu pai, Hubert Bloc Boris, cidadão cratense, ex-maqui na Segunda Grande Guerra, fazia questão de demonstrar seu amor à França dando um nome à sua residência. Expressava, assim, esse sentimento de liberdade e alegria e ao mesmo tempo de uma saudade arraigada e difícil de esconder. Era um homem alegre e inteligente, e tinha a alma de artista. Pintava telas abstratas, escrevia em Português seus discursos do Rotary, tinha muitos amigos que o admiravam... e era um dínamo no âmbito do trabalho.
Dizia ele que seu aprendizado de Latim, quando estudante, o fez assimilar mais rápido o Português que falava com algum sotaque. Era um homem muito afetuoso e não se envergonhava disto. Ai de mim e dos meus irmãos se não lhe aplicássemos um sonoro beijo na bochecha na hora do desjejum... Meu pai, era um homem diferente, sensível, lábil e hábil, que se deixou consumir pela vida tentando compensar-se dos sofrimentos causados pela Guerra, das perdas, e das feridas da alma.
Atrás de um grande homem, uma grande mulher: Janine, minha mãe. Ela viveu no Brasil, mais propriamente, no Crato, desde 1957, quando Dominique minha irmã, teve uma crise de apendicite e foi trazida às pressas da Fazenda Serra Verde até o Crato, num Jipe, por estradas de terra esburacadas e enlamaçadas. Foi operada em caráter emergencial, por Doutor Macário, num dia de tensões enormes. Enfim, este é outro capítulo.
Minha mãe viveu quase que silenciosamente seguindo seu amado em todos os lugares. Era moderna para sua época. Sofrida também pelos maus tratos da Guerra, mas isto não fez dela uma pessoa soturna. Era alegre e sorridente, reservada e de uma gentileza inigualável. Quem a conheceu sabe disso.
Mas, os anjos um dia voam de volta ao reino e foi pra lá que eles se foram há algum tempo deixando atrás de si pessoas que os amavam. Era preciso que eu falasse isto, antes de mais nada. Há coisas ditas por aí que me obrigaram a calar o tempo e cabe-me agora fazer-lhes justiça. E o que me faz falar neste momento, não é apenas meu amor filial, mas o dever de mostrar a verdade sobre duas pessoas queridas do Crato.
Agora, o assunto é outro. Voltemos à rua Irineu Pinheiro. A essa época, a rua era nova e terminava pouco adiante de minha casa. Seu Felipe Ribeiro da Silva e Dona Guimar, nossos vizinhos e amigos, na época, venderam a meu pai a casa de número 22 (que depois mudou de número). Ficava (e ainda está lá ) bem em frente do “Grupo Teodorico Telles” (que depois, com as novas denominações, recebeu aquele nome enorme que é um martírio para os pobres aprendentes).
Havia, nesse tempo poucas casas construídas nos dois quarteirões que compunham o núcleo de moradores da rua. Quase em frente ao Seu Felipe moravam Seu Cícero de Holanda Cavalcanti e Dona Marivalda (e uma meninada danada: Gracinha, Glória. Rubens e Renato (gêmeos) Meirinha e Vanda)... Um pouco abaixo, uma vila de casas do mesmo estilo. Cada uma com sua história. E a turma era grande! A começar pela casa de Dona Joaninha e Seu Pedro que gastaram todo o seu Português para batizar os seus rebentos: Evaldo, Erivaldo, Edilton, Ernane, Evanilda (Vanidô), Evaneide, Erivane... parece que havia mais um, mas como era mais velho não estava por lá... Subindo um pouco, a casa de Dona Ana Banca (Ana Moura), mãe de Aparecida e Gilberto... Ao lado, a casa de Marisa Sobreira e Inês (sem esquecer Leni)e seus irmãos: Cícero e Donizeti. Era lá onde havia uma radiadora que derramava som pela rua, além dos recadinhos do coração.
Ah, e finalmente chegamos à casa de Dona Ana Preta (Ana Simões)– que criava Socorro e que não era preta, pois este era apenas o apelido que a distinguia da outra Ana. E o louro? Eita, papagaio gaiato! Gritava o dia inteiro: Socorro! Socorro!
Era quase em frente à sua casa que se reunia um séqüito de jogadores de peteca (feita por seu Zé Barbosa). Era realmente uma roda grande de vizinhos-amigos que se empenhavam pra não deixar cair a “dita cuja”. Lá de Seu Felipe, vinham: Rita, Sérgio (Batata), Derico, Adriano, Aninha, Bibica (Fabiana), Bodão (Marquinho) Corrinha (era pequenina ainda). Claro que havia briguinhas, risadas, folguedos, fofocas, intriguinhas... mas sobretudo alegrias e sorrisos que se espalhavam pela rua e chegavam aos ouvidos de Seu Pedro Praieira em sua bodega, além da Pracinha.
Doutor Derval e Dona Luizinha foram morar por ali, numa casa linda e imponente, colada à casa de Seu Felipe, na rua que cortava a Irineu Pinheiro. Claudia, Zena (Azenete) e Leandro eram os mais velhos (Fafá era o caçula), mas não visitavam os vizinhos, nem também jogavam peteca. Morava, com a família, Joana d’Arc, prima deles e excelente amiga.
Assim, dentre tantas histórias da Irineu Pinheiro, ressalto neste momento apenas mais um detalhe curioso. Uma personagem que me ficou na memória por suas características “sui generis” : era Dona Ana Preta, que em sua simplicidade, fazia parte do folclore da rua. E havia um motivo especial para isto. Ela era amiga de Seu Januário, pai do nosso Luiz Gonzaga, rei do Baião e era sua anfitriã quando ele visitava a cidade de Crato. Seu Januário ia buscar, lá em Seu Zé Barbosa, que morava mais acima, os chapéus de couro e gibão, que este fazia com esmero e que eram encomendados por Luiz. Dona Ana também gostava de contar as histórias de Lampião e, “vira-e-mexe”, tinha gente curiosa por lá escutando os “causos”, recheados de fantasia.
E assim, para encerrar, fica aqui a lembrança e a saudade desse tempo e dos finais de tarde em que, quando o dia esfriava, Dona Ana Preta, toda faceira, se sentava na calçada em sua cadeira de balanço e anunciava às passantes: “Minha fia, o tempo tá tão quente que eu vim aqui fora tomar um deforete”.
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P.S. Agradeço a Glória pela (re)lembrança de alguns detalhes...
Texto de Claude Bloc