Pompílio Evangelista de Mendonça
carregava, junto ao nome pomposo, uma personalidade não menos respeitável.
Atarracado, corpulento, voz de barítono, falava pausadamente como um bluesman.
Nunca se o viu alterado, levantando a voz, discutindo ou tentando ganhar
embates com sua retórica. De gestos largos, abraçava longamente a todos que o
procuravam, com uma lhaneza de trato difícil de se encontrar naqueles confins
de Matozinho. Extremamente bondoso, caritativo e solícito, nosso amigo atendia
com muita presteza a tantos que o procurassem. Dir-se-ia falar-se com um bispo ou um cardeal
quando se procurava Evangelista, talvez, por isso mesmo todos o conhecessem por
Dom Pompom.
Pompílio
chegara em Matozinho há uns vinte anos e vivia tocando uma fazendola onde
criava gado, bodes e carneiros. Morara em várias cidades , anteriormente, e
comentava-se, a boca miúda e com cuidados redobrados, que o passado do nosso bispo popular
contradizia sua postura tão fina e recatada. Balbuciava-se, aqui e ali, que
fora pistoleiro de aluguel dos mais afamados e que atrás daquela figura
delicada e afável escondia-se uma cascavel de doze guizos. Isso , de falar por falar, saltava, algumas
vezes de algumas línguas bífidas da Vila. Para a mor parte dos matozenses, no
entanto, estas questiúnculas nem interessavam, até porque todos gostavam da
figura honrada do velho Evangelista. Apesar
da divulgada folha corrida de Pompom, as pessoas o amavam mais por
reconhecimento que por temor.
Sabia-se
por ali que a família de Pompílio era um verdadeiro clã. Tinha parentes e
aderentes espalhados por todo o estado e que se ajudavam mutuamente. Mexer com
qualquer um deles, ofender alguma filha dos Mendonça era cutucar nu uma caixa
de marimbondo de chapéu. De repente, sem que ao menos se esperasse, lá vinha
uma bala perdida, um carro desgovernado, uma pedra rolando da ribanceira: tum !
No dia do velório lá estava nosso Dom Pompom, cabisbaixo, choroso,
cumprimentando todos os familiares e se pondo à disposição para desvendar o
crime ou acidente tão pavoroso.
Contava-se
dele, um caso exemplar. Soledade, a sua primogênita , casou com Pergentino, um
sujeitinho meio boêmio, chegado a um carteado e a um violão. O pai nem queria o
casamento, torceu o nariz, mas Soledade fincou pé e não teve como retroceder. Entrado
na família, ele passou , imediatamente, a gozar da imunidade diplomática dos
Mendonça. Casava e batizava, seguro de
que tinha guarda-costas. Pergentino chegava bêbado em casa e gostava de bater
na esposa. Pompom soube das lapadas frequentes, mas não se meteu : ela é que
tinha escolhido aquele caminho. O problema é que um dia, a surra foi tamanha
que Soledade procurou o pai , em prantos, com a cara inchada e o braço quebrado
: não aguentava mais tanta peia. Dom Pompom ouviu-a calmamente e informou que
sabia de tudo mas não quisera meter a colher de pau naquele angu de caroço.
Agora, que ela o procurara, sim, prometeu resolver a questão. Consta dos anais
de Matozinho que nosso bispo contratou um pistoleiro e pediu que resolvesse a
questão. Acertou o preço: R$ 2000,00. Deu-lhe a metade e combinou hora e local,
para depois da consumação do fato, se encontrarem para o restante do pagamento.
Dito e feito. Pergentino estava todo serelepe no Bar do Giba, de violão em
punho, entoando “A Deusa da minha rua”, quando um sujeito entrou tranquilamente
no bar, disparou um único tiro a queima roupa, no cocuruto de Pergentino, e saiu como se nada tivesse acontecido.
Soledade quase enlouquece, nunca imaginara que o tratamento seria tão radical,
mas calou o bico. Dom Pompom, então, procurou a polícia e , visivelmente
abalado, disse-lhes que tinha informações de onde estava o assassino.
Prometeu-lhes , então, uma gratificação de quinhentos reais, sob uma condição:
não queria que o atirador escapasse. A polícia concordou. Pompom, então, deu o
local e a hora exatos que havia combinado com o pistoleiro para o recebimento
da outra metade. A polícia já chegou atirando: o homem havia resistido à
prisão.
Sulpício
Mendonça, filho mais novo de Pompílio, sempre foi chegado aos livros. Estudou
com afinco e terminou se formando em advocacia. Daí para juiz foi um pulo.
Assumiu em Bertioga. Sulpício sabia do passado
paterno, mas sempre o respeitou, embora admitisse, para si mesmo, que a
profissão que escolhera , certamente, era uma espécie de contraponto ao
obscurantismo contravencional da família. Quisera trazer algum ar de legalidade
à família. Dr. Sulpício fez carreira
meteórica por ali. Brevemente se esperava uma promoção : ele deveria assumir
uma Vara importante na capital.
Um
belo dia, Dr. Sulpício participou do julgamento de uma facínora que havia
assassinado as próprias esposa e a
filha. Acabado o júri , o réu pegou vinte e cinco anos de xilindró. Ao ouvir a
sentença, revoltado, ele ameaçou:
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Doutor, reze para eu passar muito tempo no xadrez, viu ? Quando eu sair, o
senhor vai me pagar. Se eu matei até a minha , que dirá a sua ! Acabo com você
e sua família, seu miserável !
Sulpício
já estava acostumado com ameaças, de maneira que nem levou muito em conta o
desabafo do assassino. Ficou , no entanto, mais encafifado que aliviado quando, três dias
depois, soube que o sentenciado tinha sido morto na cela, com mais de cinquenta
perfurações de cossoco. Desconfiou que Dom Pompom poderia estar por trás
daquela solução tão radical. Procurou o pai e sondou-o. O velho, pausadamente,
informou que tinha mexido os pauzinhos e resolvido a pendência. Sulpício
agitou-se:
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Papai, não acredito ! Não precisava esta loucura! Eu sou a justiça ! Não
estamos mais nos tempos das cavernas ! Meu Deus !
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Meu filho, mas aí, já não estava mais na
sua jurisdição!
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Como não, papai ! Eu sou juiz! Lembra ?
Dom
Pompom, então, mostrou as rígidas regras do seu
velho testamento:
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Meu filho, você é formado em Letras ! Eu é que sou formado em Tretas, viu ?