Onde se encontra a razão?
A minha, a tua, a dele? A razão como aquele dom da verdade.
Da justiça. No modo cearense de dizer: ele tinha razão.
E vou falar do lugar onde moro há quarenta anos. No Rio de
Janeiro. Jardim Botânico, cercado de belíssimos e qualificados equipamentos
urbanos: o próprio Jardim, o Parque Lages, a Lagoa Rodrigo de Freitas, o Jóquei
Clube, a Hípica, hospitais públicos e um seguro modo de viver.
Aí dou um salto e vou àquele samba do Nélson Cavaquinho: “não sei quantas vezes, subi o morro
cantando, sempre o sol me queimando e assim vou me acabando”.
Sim. Para pautar a razão: escrevo pensando no médico
esfaqueado e morto enquanto fazia ciclismo na Lagoa, no caminho pelo qual
sempre passo. E para ajustar mais o campo: sou Flamengo e tenho uma nêga
chamada Tereza.
Mas voltando ao morro. Quantas vezes terminei a minha função
de médico da comunidade da Favela do Escondidinho, no Rio Comprido, descia o
morro para continuar subindo pelo túnel da Rua Alice e, então, descer uma escadaria
imensa (o povo subia fazendo zig-zag nos batentes para melhor respirar) até a
Avenida Laranjeira, pegar o ônibus, atravessar o túnel Rebouças e chegar à
Lagoa e daí a pouco em casa (apartamento).
Eu vivia em dois mundos. Pertencia aos dois. E foi tão
imenso este viver para a cultura carioca, partida, onde rico não sobe o morro,
mas o pobre presta serviço em suas casas, que me tornei manchete de jornal,
editorial de primeira página no famigerado O Globo e até entrevistado fui no
Jornal Nacional para falar o óbvio, que o povo precisava da segurança urbana
(emprego, educação, saneamento básico, transporte e lazer).
E era este o clima como a moçada costuma falar. O povo do
morro vivia em insegurança, inclusive da violência interpessoal. Cheguei a
tirar bala de jovens que viveram pouco. Atender punguista todo cortado de
gilete por tentar roubar travestis na Praça Tiradentes.
Nos anos seguintes, o tráfico de drogas empregou muitos
jovens, mas trazia a marca maldita da criminalização e com isso a formação de
grupos armados, que levaram a guerra para o coração do povo.
Esperem um pouco, ao recordar aqueles atendimentos médicos
não generalizo. Era a exceção. O meu grande trabalho era com gente honesta em
igualdade de valor que meus vizinhos do “asfalto” (acho que até mais, pois no
limite sabem o papel da solidariedade).
Aliás. Posso afirmar que mais honestos. Pois, por estes dias
no Jardim Botânico e Lagoa o barulho dos batedores de panela foi ensurdecedor
em protestos contra o PT, governo Dilma, Lula e tudo que representa esta linha
que afinal me coloquei: entre dois mundos que os bem-sucedidos teimam em manter
separados.
Portanto, não acredito uma patavina furada na manifestação
em solidariedade ao médico morto. Falando em paz para todos. E não apenas para a
Zona Sul, enquanto pedem mais policiamento e que as linhas de ônibus dos seus
empregados não parem mais na região. E eles sabem que não podem cercar ainda
mais seus condomínios.
Como sempre, o discurso da paz é furado. Enquanto batem
panelas, querem mesmo é usar o trabalho de prestadores de serviços, porteiros,
vigias, empregadas domésticas e babás vestidas de branco, mas têm medo de seus
filhos e netos.
Querem o todo, mas apartam o seu querer.