Calixto Tributino retornou a Matozinho já velho , com a cara
parecendo um papiro da III Dinastia. Saíra ainda menino, perambulara pelo mundo,
e terminou por se fixar em Codó no
Maranhão, onde fez a vida e de lá trouxe
histórias para colorir a opacidade da sua velhice. Ainda rapazote, metera-se com roubo de gado em Matozinho --
coisa de adolescente, diz-se hoje, mas que naquelas brenhas considerava-se
crime inafiançável, no mínimo apenado com tiro de trabuco no toitiço. Por isso
mesmo, os pais de Calixto anteciparam
sua arribação inevitável. Ele partiu com passagem apenas de ida e, como bom
sertanejo, não mais deu notícia. Parte
de uma récua infindável de filhos, quebrada a casca do ovo, o matuto percebe
que é hora de alçar vôo: vira uma página
desta vida que não tem marcha ré. Todo
adeus, afinal, carrega consigo aquele gosto de nunca mais. Quando Tributino
resolveu retornar, já tinha o ninho sido
desfeito, os pais e irmãos haviam obedecido ao inevitável chamado da velha da
foiçona. Ali encontrou poucos amigos da sua geração. Não trazia no matulão
muitos recursos, apenas um dinheirinho da venda da casa em Codó que usou para
comprar uma outra em Matozinho, e uma
aposentadoria minguada do FUNRURAL.
Ninguém
nunca compreendeu bem porque Tributino voltara. Toda uma existência plantada em
Codó, onde, certamente, devia ter mais amigos sobreviventes que em Matozinho,
alguns filhos residindo por lá e outros espalhados mundo afora, esperava-se que
seu outono no Maranhão fosse menos rigoroso do que na sua cidade natal. O
retorno ,possivelmente, teria alguma relação com sua fuga e sua folha corrida
na adolescência. Calixto , homem de bom coração , deve ter carregado
eternamente consigo aquela mácula, aquele sentimento de culpa. O filho pródigo
voltara para se redimir : não sou nada daquilo que vocês estão pensando! Aposentado, para espairecer e não ficar numa
cadeira de balanço, de butuca esperando a morte, Calixto meteu-se a marchante
de bode. Abatia uns cabritinhos nos fins de semana e saía vendendo a carne,
numa burrinha, rua afora. Acompanhava-o Fantico, um cachorrinho pé-duro, amigo
inseparável e que chegara com ele na viagem de volta. A profissão não se mostrava das mais glamorosas
e, claro , sem muitas vitórias para se
vangloriar, derrotado em quase todas as batalhas que empreendera, teve
que criar um personagem, uma espécie de Tributino Cover, um ser quase mitológico impregnado de poderes mil: uma espécie de
Ulisses Matozense. Dia a dia, entre uma rodinha e outra nas calçadas, debulhava
suas peripécias em terras maranhenses. E eram muitas e muitas estripulias para
um super-herói só.
Nosso
personagem dizia-se trabalhador incansável. No maranhão trabalhava no roçado o
dia todo e, não bastasse isso, mandara fazer um candeeiro de cinco bicos que instalara com uma alça de flandes na cabeça, possibilitando-o, com a iluminação,
trabalhar na lavoura também à noite. Um
dia, contou ao Coronel Serapião Garrido que as roças de Matozinho eram muito
pequenas. Lá em Codó , num roçado pequeno, ele situara dez cuias de gergelim. O
Coronel fez um cálculo rápido das covas necessárias para se colocar a
quantidade imensa das pequenas sementes de gergelim que perfaziam as dez cuias
e , sem arrodeios, desconfiou da empreitada.
---
Você deve estar enganado, Calixto! Não pode ter sido dez cuias não! Eita lapa
de roça danada ! Se fosse, você teria vindo plantando do lá e passava por aqui ainda
semeando...
De
pouco estudo, Calixto procurava alguém
para ditar as cartas que enviava aos filhos. Apesar da pouca instrução ,
gostava de ser pomposo nas suas missivas, não interessando muito a mensagem a
ser enviada. Queria, no fundo, impressionar os circunstantes e eram comuns os períodos
truncados , a dubiedade de algumas frases, o emprego atravessado de algumas
palavras.
---
Escreva aí Giba !
“Caro Laurentino,
Relativamente, com relação à bausa
do procuro do comerço, ponto. Os atavios, os loro e os talabardão das cangaia
tão mais destiolado que os pau de sebo das quermesse de Padre Arcelino,
benza-te-Deus, quanto mais, principalmente, vírgula...”
Matuto
olhava aquele discurso de queixo caído:
--- “Vôte
! Esse Tributino devia ser era adevogado”!
Como
sempre, Calixto tendia a levar suas estripulias para o ramo da caça e da pesca.
No item pesca, os peixes maranhenses , segundo nosso marchante, ganhavam do
pirarucu em tamanho. Calixto abria os braços nas narrativas para dar uma idéia
apenas do tamanho da cabeça das traíras que desenovelava dos landuás de lá que
mais pareciam empanadas de circo. Um dia, quando começou contar uma dessas
pescarias, o soldado severo estava no meio da platéia. Avançou, calmamente, e
colocou algemas nos punhos de Calixto, na tentativa de evitar a medida
desmesurada do peixe que viria com a abertura dos braços logo a seguir. O
pescador algemado não perdeu o fio da história, quando chegou nos finalmentes :
“Era um peixão desse, desse... as mãos atadas impediam-no de apontar o tamanho.
Ele então, usou um artifício. Fechou os dois polegares junto com os dois
indicadores, fazendo duas rodas grandes e completou:
---
Ói o tamanho dos ói do bicho !
Na seção
caça, Tiburtino dizia sempre que
Fantico, seu companheiro de caçadas, tornara-se um verdadeiro exterminador de
onças pintadas no Maranhão. Saiam à noite, soltava o cachorro e rapidamente o
pé-duro fazia alarde: acuava uma onça , ela temerosa subia em alguma árvore,
ele vinha, apontava a soca-soca, era a espoleta cortar e a bicha cair baleada. Aí,
Fantico pulava em cima e estraçalhava o felino. Ficara conhecido o cachorrinho
por lá, pela sua valentia, já carregava no cartel mais de duzentas maracajás
trituradas pelos seus dentes. Calixto enjeitara
dinheiro muito nele, chamavam-no naquelas brenhas de “Traça Onça”, afirmava o caçador impávido e
orgulhoso. As proezas de Fantico eram
difíceis de ser testadas, uma vez que as onças quase não mais existiam por ali.
Uma ou outra fora notificada na Serra da Jurumenha, comentava-se que a caça
predatória tinha praticamente exterminado a espécie . Nosso caçador, no
entanto, afirmava, de cátedra ,que a escassez devia-se ao medo de Fantico. A
fama do cão se espalhara em toda a região e as bichas fizeram bunda de ema !
Um
dia, soube-se de uma novidade na cidade. Um caçador armara uma armadilha e
pegara duas onças : uma preta e outra pintada. Colocou as duas em jaulas e
trouxe a Matozinho, como um zoológico particular. Alugou um puxado da Bodega de
Giba , cobriu a porta com uma empanada e ficou lá, cobrando ingresso para quem
quisesse ver. O velho Serapião Garrido soube da novidade antes de Calixto e
resolveu pôr a limpo a veracidade das astúcias de Fantico. Esperou o caçador na
entrada da cidade e convidou-o para uma surpresa. Tirbutino segui-o curioso.
Fantico , como sempre, veio atrás, no rastro de dono. A bodega de Giba ficava
do outro lado da praça da matriz, confrontando a Igreja . O sacro e o profano
em vis-à-vis. Serapião e Triburtino cruzaram a praça. Só , então, perceberam
que Fantico havia empacado no meio : orelhas empinadas, ventas dilatadas e
olhos assustados. O faro privilegiado já o havia alertado do perigo iminente.
Serapião pediu , então, a Calixto para estumar o cachorro. O caçador estralou
os dedos, assoviou, chamou : “nego, nego, nego...” e nada ! Fantico, olhos
esbugalhados, permanecia imóvel. Garrido
quis saber porque Fantico andava tão sem apetite. Continuaram, pagaram os
ingressos e entraram. As duas onças , enormes, lá estavam, com aquele cheiro
forte de felino e dentes e rosnados ameaçadores. Serapião deu um passo atrás e
observou , ao longe, Fantico que não tirava os olhos deles. O coronel, então, balançou
a empanada de repente. Fantico esturrou! Quase não conseguiu, a princípio, fazer a largada porque deslizou no próprio
mijo, saiu, rua abaixo, juntando perna com cabeça. Nunca mais se soube dele.
Calixto ficou meio triste, mas não perdeu a pose:
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Deve ter voltado para o Maranhão! Decepcionou-se com esses gatinhos aqui de
Matozinho! Deve ter dito : Taqui, ó ! Eu mijo é prá vocês !
J. Flávio Vieira